As empresas brasileiras do setor automotivo têm desempenhado um papel cada vez mais ativo no processo de inovação como parte do fenômeno de descentralização global das atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Esse movimento, caracterizado e analisado em um estudo brasileiro que será publicado neste mês na Alemanha, pode ainda ganhar contornos mais expressivos com novas políticas públicas de fomento ao desenvolvimento tecnológico, como o programa Inovar-Auto, regulamentado em outubro pelo governo federal.
O estudo "Inovação brasileira na cadeia de valor automotiva global", realizado pelo professor Ruy Quadros, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra de que forma a indústria automotiva do Brasil está se consolidando como um novo espaço para inovação nessa cadeia industrial mundial. Parte das conclusões dessa pesquisa foi publicada em fevereiro de 2012 pelo Institute of Development Studies (IDS), do Reino Unido, mas o estudo completo, com dados atualizados, será lançado em livro, em inglês, neste mês pela editora alemã Lambert Publishing, sem previsão de lançamento no Brasil.
Ampliação da capacidade de engenharia
Apesar de levar em conta a importância do movimento das grandes montadoras instaladas no Brasil, a pesquisa de Quadros tem seu foco na cadeia de valor representada pelos fornecedores de autopeças e prestadores de serviços e na influência que a descentralização das atividades de inovação das fábricas de automóveis tem exercido nesse setor.
Para mensurar esse movimento de descentralização, Quadros mostra de que forma as quatro maiores montadoras em operação no País ampliaram sua capacidade de engenharia a partir do final da década de 1990 e voltaram seus esforços para o desenvolvimento de produtos nas subsidiárias brasileiras. Segundo ele, a norte-americana General Motors, em 2005, aumentou as competências de sua unidade de desenvolvimento de produtos no Brasil, equiparando-a aos demais centros de inovação da marca nos Estados Unidos, Alemanha, Coreia do Sul e Austrália. Com isso, aumentou a equipe de engenharia de 400 profissionais, em 1999, para 1.300 engenheiros, em 2007.
Em 2008, dispendios em P&D do setor automotivo representaram 27% do total investido em P&D pela indústria de transformação A unidade brasileira de engenharia da alemã Volkswagen também cresceu em importância na plataforma de desenvolvimento de produtos da montadora. Em 1999, a empresa contava com 450 engenheiros no País, número que subiu para 650 em 2005. Na semana passada, a empresa anunciou que 2012 foi seu melhor ano de vendas em quase seis décadas de operação no País e que deve encerrar o ano com 850 mil unidades vendidas, entre carros de passeio e comerciais leves. O Brasil, que já é o segundo maior mercado da marca no mundo, atrás apenas da China, deve receber, até 2016, um investimento de R$ 8,7 bilhões da Volkswagen.
No caso da italiana Fiat, a subsidiária brasileira se transformou em um centro mundial de competência em algumas tecnologias, como nos sistemas de suspensão, apesar de, segundo Quadros, não ter independência formal para o desenvolvimento completo de modelos. De acordo com o estudo, a Fiat, no entanto, é um caso raro de pesquisa colaborativa aberta entre um fabricante instalado no Brasil e instituições de pesquisa externas, como a realizada entre 2004 e 2007, sobre interferências eletromagnéticas, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No setor de desenvolvimento de produtos, a Fiat elevou no Brasil o volume de engenheiros contratados de 150, em 1999, para 400, em 2007.
O estudo afirma que, entre as quatro maiores fabricantes, a norte-americana Ford é a que apresenta uma evolução mais significativa, apesar de, em meados dos anos 1990, ter centralizado seu setor de desenvolvimento de automóveis compactos no Reino Unido, como parte de um processo de reestruturação. Depois de perder mercado no Brasil e reduzir seu quadro de engenheiros para menos de uma centena de profissionais, destaca Quadros, a Ford decidiu mudar de abordagem. A alavanca do processo foi o projeto de desenvolvimento do modelo EcoSport, em meados dos anos 2000, que alcançou sucesso no mercado e estimulou a ampliação do corpo de engenheiros da empresa, que passou de 120 profissionais, em 1999, para 650 profissionais, em 2005. Apesar de não dispor de dados mais recentes sobre esses recursos humanos, Quadros afirma que as montadoras recentemente esbarraram no obstáculo da escassez de engenheiros que afeta o País, impedindo a contratação de mais funcionários.
Crescimento do peso da P&D
Quadros demonstra no estudo, citando dados da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), de que forma a P&D no setor automotivo (que inclui os fornecedores de autopeças) cresceu muito mais do que na indústria brasileira de transformação como um todo. O crescimento dos investimentos em P&D chegou a 516% entre 2000 e 2008, quando passou de R$ 549 milhões para R$ 3,4 bilhões. No mesmo período, os gastos com P&D da indústria brasileira em geral cresceram de R$ 4,3 bilhões para R$ 12,4 bilhões, ou 186%. Outro indicador importante que destaca o aumento do peso da indústria de veículos no cenário de inovação nacional é a fatia que ela ocupa no total de P&D: em 2000, os investimentos em P&D do setor automotivo representavam apenas 13% do total investido em P&D pela indústria brasileira; em 2008, esse número dobrou, para 27%.
Nova estrutura organizacional
O processo pelo qual as empresas transferem atividades do processo de inovação dos departamentos centrais de P&D e das unidades centrais de desenvolvimento de produtos para outras organizações é chamada de "segmentação organizacional do processo de inovação" (ODIP, na sigla em inglês), destaca o estudo de Quadros. Esse fenômeno pode acontecer tanto na concessão de mandatos para setores internos da própria empresa — como subsidiárias e unidades descentralizadas de desenvolvimento de produtos — quanto para atores externos — como fornecedores, firmas de engenharia, prestadores de serviços intensivos em conhecimento (KIBS, na sigla em inglês), institutos de pesquisa e universidades.
Recentemente, os fornecedores de autopeças têm conquistado uma importância maior no design e na inovação relacionados aos projetos de veículos. Das 20 mil a 30 mil partes individuais que compõem em média um automóvel, reunidos em centenas de componentes e subsistemas, 50% a 75% são adquiridos pelos fabricantes de veículos de seus fornecedores, que dispõem de relativa independência de engenharia e design para desenvolvê-los a partir das especificações da montadora.
Amostragem do estudo
Para realizar o estudo, Quadros elegeu uma amostra representativa de 12 empresas brasileiras e estrangeiras de autopeças com operações no Brasil, realizou entrevistas e fez visitas e observações de campo para compreender as transformações. Entre as empresas estão oito brasileiras (duas delas joint-ventures com norte-americanas) e quatro multinacionais (três alemãs e uma norte-americana). A pesquisa de campo descobriu que sete das 12 empresas alcançaram um nível avançado na capacidade de inovação, gerando produtos e processos que muitas vezes serão empregados fora do mercado brasileiro. Três das firmas possuem capacidade de inovação considerada intermediária e duas delas tem capacidade de inovação classificada como básica.
"Um ponto de destaque nos casos estudados é que o estabelecimento das capacidades de inovação tem se concentrado em um número limitado de domínios tecnológicos, sendo os mais significativos os de engenharia de materiais — incluindo metais, polímeros e tribologia [ciência que estuda fenômenos relativos ao atrito, desgaste e lubrificação] —, engenharia mecânica, engenharia química e metalurgia", explica o estudo.
A pesquisa empreendida por Quadros conclui que o aprimoramento da capacidade de inovação dos fornecedores de autopeças foi um processo contínuo, baseado em um planejamento estratégico, ao longo de pelo menos 15 anos. Essa acumulação de capacidade tecnológica para desenvolver novos produtos e processos, no entanto, não foi uma consequência da ODIP, pois começou antes mesmo de as grandes companhias dos países desenvolvidos decidirem descentralizar suas atividades de P&D. Para Quadros, a entrada desses fornecedores na cadeia global de inovação não ocorreu por uma decisão das multinacionais, de cima para baixo, mas sim no sentido contrário, a partir do desenvolvimento de suas capacidades de inovar.