Desde o início da crise financeira internacional, o governo brasileiro abriu mão de R$ 26 bilhões em impostos para a indústria automotiva. Ao mesmo tempo, o setor criou 27.753 novas vagas de trabalho, o que equivale dizer que cada nova carteira de trabalho assinada pelas montadoras custou cerca de R$ 1 milhão em renúncia fiscal aos cofres públicos.
As medidas de estímulo à venda de veículos nos últimos três anos e meio também contribuíram para a remessa de US$ 14,6 bilhões ao exterior, na forma de lucros e dividendos, para as matrizes que contavam prejuízos com a queda na receita nos Estados Unidos e na Europa. O lucro enviado para fora do País fica próximo do valor que as empresas deixaram de pagar em impostos.
A maior parte dos benefícios foi anunciada de surpresa pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, sem planejamento com outros setores do governo. Sob a tutela da presidente Dilma Rousseff, o ministro assumiu a negociação direta com as montadoras, gerando críticas, nos bastidores, de outros gabinetes. Há quem critique a falta de contrapartidas ambientais, de geração de empregos e de investimentos pelas empresas.
Economistas concordam que o consumidor brasileiro paga preço salgado para ajudar um setor da economia e criticam a forma atabalhoada com que o governo lida com as montadoras. Mas divergem sobre a necessidade de ajuda ao setor: uns dizem ser vital e outros apostam em uma abordagem mais liberal que permitisse, por exemplo, que os empresários tivessem prejuízo na crise para que aumentassem a qualidade do produto.
Lobby
A ajuda a conta-gotas, em vez de políticas de longo prazo para tornar a indústria nacional mais competitiva, reflete o lobby de alguns setores viciados em receber auxílio estatal, diz Gabriel Leal de Barros, especialista em crédito público do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas.
"A indústria automotiva do Brasil tem 60 anos e a da Coreia do Sul, 35, e eles são tão mais competitivos que o consumidor consegue perceber isso simplesmente entrando no carro", afirma Barros, que defende reformas econômicas e investimentos em infraestrutura para reduzir custos da indústria.
Os dados mostram que o País "abre mão de muita coisa para atender aos interesses desse setor, a um custo enorme", diz Julio Miragaia, coordenador de Políticas Econômicas do Conselho Federal de Economia. "Provavelmente, a maior parte da desoneração tenha sido enviada na forma de lucros para o exterior."
Se houve queda no preço ao consumidor, a política do governo não estimulou a concorrência, segundo o consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento. "Os dados demonstram que o regime beneficiou mais as empresas tradicionalmente instaladas do que a entrada de novos concorrentes, o que seria a intenção original."
Para Julio Gomes de Almeida, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o automóvel representa "o bem típico da indústria capitalista", por significar aos olhos do consumidor "ascensão social e liberdade". Além disso, ao cortar impostos das montadoras, o governo acaba beneficiando uma imensa cadeia de empregos.
"Não existe cadeia produtiva mais perfeita, intensa, longa e encadeada que a da indústria automobilística", diz Almeida, citando empregos na fabricação de aço, borracha, plástico, componentes eletrônicos, autopeças, venda de seguro, financiamento e manutenção como exemplos.
Prejuízo
Indagado sobre a necessidade de estímulo estatal em meio à crise internacional, o professor de economia da Fundação Dom Cabral, Rodrigo Zeidan, afirma que "uma crise traz prejuízo e pronto". "As políticas de renúncia fiscal devem ser estruturadas para o longo prazo e não apenas para resolver problemas de altos estoques. O que importa para a sociedade são investimentos que geram empregos no futuro."
A reportagem questionou insistentemente os Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) para comentar o assunto, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
Por Iuri Dantas/O Estado de S. Paulo