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É comum que indústrias que produzem itens para consumo humano (como alimentos, bebidas, medicamentos e outros) usem recipientes de aço inox para processá-los. Esse metal é bastante conhecido pela resistência e pela facilidade de limpeza e manutenção — e essa maior durabilidade em relação à corrosão faz ele ser preferido quando se quer evitar a liberação de elementos químicos em alimentos e medicamentos.
Essa característica é inerente ao aço inox: um de seus componentes, ao lado de outros metais, é o cromo, que proporciona a formação de um filme passivo natural protetor quando o inox é exposto ao ar. Como o cromo tem forte afinidade com o oxigênio, ele reage e forma óxidos e hidróxidos estáveis que aderem à superfície do metal. A formação desse filme invisível de óxido de cromo é conhecida como passivação natural, e é esse processo que impede a corrosão do aço inox.
Dessa forma, esse material se torna o mais indicado para evitar contaminações por microrganismos e outras substâncias. Na prática, porém, a reação de oxidação — e a consequente corrosão — nas indústrias alimentícia e farmacêutica é inevitável, mesmo que demore mais. Isso porque, com o passar do tempo, há adesão de proteína do produto que está em processamento no recipiente de metal, o filme passivo (inicialmente rico em cromo) passa a ter maior teor de ferro, o inox oxida e libera ferrugem.
Essa realidade não é exclusividade do Brasil: indústrias em todo o mundo passam pelos mesmos inconvenientes. Conhecedor dessa situação, o engenheiro de materiais Luis Henrique Guilherme, pesquisador e gerente de engenharia da ACW, teve a ideia de desenvolver uma solução para ela: um aparelho de inspeção que escaneia a passividade de uma superfície de inox, o passivity scan.
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O dispositivo permite caracterizar a resistência de superfícies de aço inoxidável com microcélulas eletroquímicas. “Há empresas que só detectam a ocorrência quando fazem a análise microbiológica ao fim do processo”, aponta Guilherme. “Quando a contaminação é identificada, apesar de alguns casos permitirem o reprocessamento do material, muitas vezes é preciso jogar tudo fora — assim, perdem-se milhões de reais.”
Com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da Fapesp, a empresa criou um equipamento portátil que permite caracterizar a superfície de inox diretamente na indústria com o uso de microcélulas eletroquímicas. “Isso não é novo: existe desde a década de 1990”, conta. “Só que, antes, era um dispositivo do tamanho de uma mesa. A avaliação tinha de ser feita em laboratório e, para uma indústria, é inviável levar tanques, reatores e tubulação para uma bancada de testes.”
O engenheiro explica que o dispositivo detecta alterações de forma preventiva e permite fazer um tratamento na superfície do aço inox para que ela continue adequada para uso. Esse processo se chama passivação química e consiste em restaurar a superfície para evitar a corrosão do material pela adesão de biofilme.
Em algumas indústrias, os recipientes de aço inox são utilizados até que sejam danificados. Só então eles são recuperados ou trocados. “Com o aparelho que desenvolvemos, é possível ir até a indústria e monitorar a qualidade da superfície de aço inox que tem contato com produtos alimentícios e medicamentos para quantificar seu grau de passivação.”
Com isso, garante-se que o material está suficientemente nobre para ser usado. Em seguida, ele passa a ser observado ao longo do tempo e, quando atinge o limite mínimo aceitável de grau de passivação, pode-se refazer o tratamento — antes de haver adesão de biofilme e corrosão localizada.
A necessidade de passivação depende de diferentes fatores, especialmente do tipo de indústria. Enquanto uma empresa de laticínios pode levar de 24 a 36 meses para requerer o tratamento, uma de fermentação pode precisar do processo a cada seis a 12 meses — uma vez que tem ingredientes mais agressivos. “Não existe um parâmetro único. É preciso monitorar o grau de conservação para identificar as necessidades de cada processo.”
Depois de desenvolver a capacidade de quantificar a resistência de uma superfície que vai processar alimentos e medicamentos, os especialistas decidiram criar uma forma mais simples de fazer a passivação. Tradicionalmente, esse tratamento é feito por imersão ou por pulverização de spray de um produto químico — em geral, ácido nítrico — para recuperar o filme passivo.
O processamento químico industrial é muito agressivo para o filme passivo natural, que não resiste. “Quando ele é removido, ocorre a corrosão. Na passivação química, remove-se parte do ferro existente nesse filme e aumenta-se a presença de cromo. Na literatura, a razão de 1,3 de cromo para 1 de ferro é o mínimo necessário. Muitas vezes, ao analisar equipamentos industriais, encontram-se razões de 0,5 a 0,8 — ou seja, não passam no critério do processamento industrial.”
O pesquisador explica que um tratamento tradicional com ácido nítrico por imersão ou spray pode levar essa razão entre cromo e ferro na superfície do aço inox a 1,5, que é um valor superior ao mínimo necessário. A equipe da startup, no entanto, desenvolveu uma opção ainda mais eficiente: a passivação galvanostática. “Esse procedimento melhora muito o tratamento da superfície de aço inox ao combinar uma solução ácida e uma certa densidade de corrente elétrica. Com ele, chegamos à razão de 2,5. Esse é um resultado muito superior ao tradicional.”
Outra vantagem do sistema da ACW é o uso do ácido cítrico, com formulação desenvolvida pela equipe da startup. “O melhor tratamento por imersão usa ácido nítrico, cujo manuseio é extremamente perigoso. Os operadores têm contato direto com esse produto e, se houver uma ruptura de uma mangueira ou de uma válvula, por exemplo, pode ser um acidente grave. Além disso, é difícil tratar o ácido nítrico para liberar os resíduos no meio ambiente.”
Já com a passivação galvanostática, além de um resultado superior na proteção de superfície, o tratamento de efluentes é mais fácil e econômico e não há risco para o operador. “Na passivação convencional, a concentração de produto químico, como ácido nítrico, por exemplo, é de 15% a 20%. Na passivação galvanostática, uso um ácido mais fraco (e mais barato) e em concentração de 7%. Assim, o custo operacional é menor, o resultado é melhor e não há risco para o operador nem para o meio ambiente.”
A startup hoje oferece uma solução que inclui a medição da resistência da superfície, o tratamento do aço inox para protegê-lo de agressões químicas e o monitoramento periódico para saber quando é necessário refazer a passivação. “Sem esse acompanhamento, as empresas não sabem quando intervir. Se esperam ocorrer a corrosão, é bem mais caro para recuperar”, descreve. “Com o monitoramento, não há gasto antecipado nem risco de o equipamento falhar.”
O especialista destaca que esse acompanhamento garante economia para a indústria. “Quando se sabe qual a qualidade química do filme passivo, é possível definir o momento de agir: não se faz a intervenção prematuramente nem se passa do ponto. Uma incrustação de biofilme, por exemplo, pode causar microfuros na superfície e, nesse caso, é necessária intervenção mecânica, que tem custo mais alto.”
Além disso, o acompanhamento e o tratamento periódico das superfícies aumentam a vida útil do equipamento. Sem esse cuidado, a troca pode ter de ocorrer em seis a oito anos. Já com a atuação preventiva, ele pode ser usado por até 30 anos. “Ou seja, esse tratamento de superfície é bastante benéfico para a indústria em diferentes perspectivas.”
Em termos de custos, Guilherme conta que uma indústria que gasta R$ 50 mil para fazer esse tratamento de superfície a cada dois anos, por exemplo, vai desembolsar R$ 300 mil se, em vez de agir de forma preventiva, deixar o equipamento falhar. “E se ela perder um lote de produção, digamos, de um mês, pode chegar a R$ 1,5 milhão de prejuízo. O custo do acompanhamento é irrisório se comparado a possíveis perdas, porque tem máxima confiabilidade.”
Guilherme conta que a solução da ACW é única e não tem concorrente no mundo. “A partir desse projeto da microcélula eletroquímica, em 2023, instalamos uma filial no Canadá em parceria com a McMaster. Mostramos que podíamos medir a qualidade do aço inox e apresentar parâmetros avançados, com informação útil de fato sobre a espessura e a resistência do filme passivo.”
A startup tem colaborações também na Alemanha e no Reino Unido, na Universidade de Manchester. “Isso foi possível porque a passivação galvanostática é algo que ninguém mais faz no mundo e nós já aplicamos em condições industriais. Não tem aumento de custo, mas tem aumento de qualidade e melhora a competitividade.”
*Imagem de capa: Depositphotos.com
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